O mendigo da blusa amarela


"O bicho, meu Deus, era um homem." (Manuel Bandeira)

Há alguns dias tenho visto uma cena que se repete, diariamente, na hora do almoço. 

O mendigo chega, de blusa amarela, diz que veio buscar uma marmita. Seu odor é desagradabilíssimo. As pessoas que já se acostumaram com a sua vinda nesse horário, não lhe fitam os olhos, apenas dizem para que ele aguarde do outro lado da rua.

Para mim, isso é novidade. Não estou acostumada com sua chegada, com sua figura desfigurada. E nem posso me acostumar com isso, o costume nos torna indiferentes.

Ontem à noite, me lembrei dele e fiquei pensando em que momento ele se perdeu de si mesmo e se transformou nesse ser indesejado, rechaçado pela sociedade. Depois pensei em coisas aleatórias e apaguei.

Hoje, no mesmo horário de sempre, ele voltou. Ele chegou e uma pessoa logo se antecipou em lhe dizer para esperar do lado de fora, que o almoço já seria entregue.

Ele, subserviente, atravessou a rua, colocou no chão sua mochila suja, sentou-se na calçada, ao lado de uma lixeira. O Sol estava forte. Ele passava as mãos nos cabelos e na barba, frequentemente. Eu o observei de longe, do lado de dentro, por trás das grades. Entre nós havia crianças brincando na varanda, e a rua. 

Os pensamentos da noite anterior voltaram com mais força. Não consegui almoçar mais vendo aquele homem com cheiro de decomposição, com trajes deploráveis, jogado como um lixo, na calçada. Não consegui almoçar não pela imagem em si, mas pelo o que ela representa. 

Seus olhos estavam absortos. Em que será que ele pensava enquanto as crianças brincavam, animadamente, na varanda?

Esse homem já foi uma criança e somente nisso que eu pensava enquanto não continha mais o nó embolando minha garganta.

Em que esquina de sua vida ele largou de sua própria mão? Em que momento ele deixou de ter um nome e passou a ser coisa? Quando que a sujeira da vida cobriu sua dignidade? Quando foi seu último banho? Será essa a sua única refeição diária? Onde dorme?

Enquanto ele mesmo acarinhava seus cabelos e barba, eu me perguntava quanto tempo há que ele não recebe um carinho, um beijo de mãe, um abraço de filho.

Quando entregaram a ele a marmita, deram-lhe junto um copo d'água. Ele agradeceu. Bebeu a água num gole só e jogou o copo descartável na lixeira. Um trapo educado. Sabe agradecer. Sabe que lixo se joga no lixo.

Ele pegou sua mochila suja, a pôs nas costas e foi embora. Eu continuei com o olhar morrendo ali, do outro lado da rua enquanto as crianças gritavam, felizes, em suas brincadeiras. 

Difícil acreditar que um dia, era o mendigo de blusa amarela que estava brincando em alguma varanda desse mundo.

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