Poeira Estelar


Hoje passei em frente a um carro que esperava o portão abrir para adentrar a garagem.

Passei tão perto que senti o calor do seu motor queimando minhas pernas. Seus vidros estavam fechados e, o dia, ensolarado. Então imaginei que o ar condicionado estava ligado, gelando tudo lá dentro. E fiquei pensando por quanto tempo eu fui como aquele carro.

Nos eventos mais cotidianos da vida podem haver os encontros mais fascinantes. Às vezes não é no momento de adentrar a vida uma da outra que duas pessoas se encontram, mas elas se encontram, como se fossem um grifo de Deus em suas histórias, como se Ele dissesse: "volte aqui depois e releia esta frase. É que ela, lá na frente, dará sentido a toda sua história."

E Deus ainda continua: "até lá, daqui a 500 páginas de vida _momento exato em que esta frase vai ressurgir para você_, vá colecionando tudo o que for belo, tudo o que for delicado, tudo o que gentilmente pode tocar uma alma. De antemão saiba que tuas próximas páginas não serão de plenitude. Você vai sangrar e, olha, vai doer. Mas não volte a esta página antes da hora porque você não vai compreendê-la fora do tempo. E nem ela se deixará ser compreendida. Plante o que há de melhor no terreno mais íntimo da tua alma. Espere. Um dia hás de compreender."

Ouvi Deus dizer isso para mim uma vez.

Eu não entendia que, fora da hora, as plantas não vigoram, a música destoa, a poesia não flui. Deus tinha razão. Doeu. Sangrou. Tornei-me como aquele carro que era quente por fora, congelante por dentro. Como último estágio, tive que suportar uma dor tão grande e ser como Fênix, misturando-me às cinzas da dignidade e da fé no que se dizia humano.

E, numa noite que ainda está tão próxima a mim, em meio a tantos livros e palavras, sinto que o próprio Deus deixou o livro da minha vida aberto naquela página, com o Seu grifo, de propósito para eu ler, como um prêmio.

Eu, que já não tinha força, tampouco fé para me inclinar sobre minha própria história, eu que já havia desistido de tentar compreender como e por que cheguei até ali não precisei de esforço algum. Um anjo comovido apontou para mim aquela frase grifada, com seus olhos ternos que diziam: "agora vocês estão prontos, olhos e letras. Misturem-se. Compreendam-se. Completem-se. Sejam."

E, de repente, toda a poeira que estava derramada sobre minhas sensações há muito esquecidas se mostraram como poeira estelar e brilharam sobre cada uma delas.

Aquela noite está tão próxima a mim, não faz muito tempo, mas nesses poucos dias eu já senti tantos sentimentos que parece que faz anos que te li.

E faz.

Desde então vejo o pertencimento de tudo o que colhi até aqui. Cada tesouro que eu julgava guardar à toa era teu. Cada impressão digital gravada em meus anseios era tua. Nada foi em vão. A cada página da minha própria vida que eu avançava era para voltar àquela frase e relê-la à altura que ela merecia e precisava.

Desde aquela noite eu abri as janelas, tenho andado com os vidros bem abertos. Desde aquela noite eu não preciso mais me esconder sob o vidro fumê da felicidade automatizada.

Como o desenho da borboleta mais linda do mundo, aparentemente não lembrado por tantos anos e executado em poucos segundos, assim é o mistério do que nos rabiscou até aqui e sacudiu toda a poeira da nossa vida, iluminando nosso novo céu.

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