É...



Seus olhos não chegavam a faiscar, mas brilhavam. Não escondiam o fascínio pelas minhas asas poderosas mesmo quando o vento se escondia. Isso de fato o entorpecia: "Ora, como podes se atirar sem a mínima garantia?", ele dizia. 

Eu sorria.

Então um dia ele me pediu para tocar em minhas asas e eu, apaixonada, permiti. As desarmei e as coloquei no chão, bem diante de seus pés.

Foi assim que, sorrindo e maravilhado, ele se curvou diante delas e, com olhar perplexo e fixado, disse que queria bordar nelas alguns brilhos, sonhos novos e pequenas luzes de amor bonito.

Claro, concordei na hora!

Ninguém até então tivera tamanha ousadia. Ele exibia destreza e facilidade em falar de coisas que só eu sentia. [Me traí cegamente, se sou sinistra de nascença e a destreza sempre me soou maioria incerta. Não percebi.]

Eis que sua eloquência envolvente e suas mãos habilidosas em tecer carinhos e vontades não ditas me hipnotizavam, e eu não queria saber como parar de me sentir abobada, enfeitiçada, abençoada por encontrar alguém que compreendia minha liberdade e dizia querer investir em meus voos mais desejados. É, o amor é assim: quanto mais profundo o sentimos, mais alto chegamos. 

Eu estava em êxtase por estar diante de alguém entendido de profundidades e de alturas. Ele quis saber do que minhas asas eram feitas. Pegou cervejas, tacos de sinuca e me apresentou aos amigos. Eu, de minha parte, me senti especial. Eu era reconhecida e absolutamente livre para flertar com os sonhos que sonhei com meus pés ainda no chão.

Entre um gole e outro, colocávamos músicas preferidas para repetir e eu ia me abrindo, expondo medos e segredos, mas sobretudo, a felicidade por estar ali. Eu não percebia que, enquanto ele falava, incrustava ilusões em minhas asas, aplicava mentiras perfumadas em minhas plumas potentes. Eu, ingênua, acreditava que eram adornos, prenúncios de realizações de tudo quanto eu almejava.

Nada disso. E o que era, jamais vou compreender. 

Anestesiada, dormi e de dia acordei sem me sentir. Eu estava sozinha e nada fazia o menor sentido. Eu, mulher feita, agora abortada da vida dele que, até ontem, me abraçava e me iludia.

Olhei para os lados e o que vi foram minhas asas no chão. Pisoteadas, sujas. Cuspidas. 

Fui um aborto planejado.

Eu, mulher forte, chorei feito menina. Que conselho daria agora a mim mesma, oh, conselheira das amigas?

Senti dores nas costas, ele tentara arrancar minhas asas. Minha liberdade ninguém tira, isso eu deixei claro, mas pelo visto, ele duvidou. 

Humilhada, caí de joelhos sobre minhas asas retalhadas. Com dores na alma, comecei a costurá-las. Sabe? A linha do orgulho ferido é dolorida.

Depois tive que lavá-las, as marcas de pisões eram muitas. Até hoje não entendi como pode alguém sorrir tão forte e ser veladamente tão cruel e baixo assim.

...

Começou a chover.

Eu, mulher sabida, só queria ser ouvida, mas ele desapareceu e me fez engolir letra a letra. Me apagou feito uma vela inútil sob o Sol, me descartou como um pano rasgado.

Maldito! Até ontem tínhamos planos, íamos desbravar o mundo! 

Hoje sou nada. Piada pronta, provavelmente. Eu, mulher feita, abortada.

Senti uma revolta tão absurda! Gritei contra o travesseiro, praguejei toda humanidade enquanto tinha contrações de ódio e desespero. Rangi os dentes, punhos cerrados. "Idiota!" eu repetia, me referindo a mim mesma.

Na mente, quebrei seu nariz tão perfeito, despedacei com as unhas sua feição harmoniosa, proporcional e gostosa. Arranquei seus dedos e pêlos, arranhei sua pele de pêssego e taquei acetona. Eu ri enquanto seu corpo se contorceu de dor e o meu, de prazer. É, vingança tem um sabor gostoso e qualquer coisa que eu te fizesse não me saciaria, seu idiota! Idiota é você, que não enxergou o tamanho da sorte que teve. Imbecil, burro! ... Malvado... Perverso... Por que fez isso comigo?

Choro.

Exaustão.

A chuva caiu mais forte sobre meu corpo doído e envergonhado. Abri meus olhos e o que vi parecia até um espelho. É, a dor nos familiariza. Será? Pode ser. Pois vi outro ser diante de mim tão machucado quanto eu. Suas asas também estavam cheias de remendos de recomeço. 

Eu, prostrada, de joelhos, sentindo mágoa e aquela ingenuidade besta que o abandono nos faz sentir.

Ele, aos pedaços, mas de pé. É, minha liberdade ninguém tira, vejo que a sua também não. Suas asas tinham cor de dor, mas cintilavam. Seus olhos queriam ir tão alto, que dali do chão, eu não podia ver. É, o que fizeram comigo, também fizeram com você.

...

Nada nos seria mais legítimo que um encontro a essa altura do desengano! 

É, a gente precisa ser traído para reconhecer em quem acreditar, a gente precisa ser moído para eleger o abrigo definitivo.

E foi assim, silenciosamente, que nossas dores se reconheceram. E desde então, voamos juntos com um tesão absurdo pela proteção um do outro. Sim, nos protegemos. É, o amor é mesmo proteção. Descobrimos isso quando nos abandonaram ao relento. Bendito livramento, é...

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