Reticências que Falam


Ontem fui ao supermercado. Eu entrei na fila da minha caixa favorita. Ela é uma mulher madura, bonita e tem nome de flor. Gosto de trocar ideia com ela, falar amenidades. Às vezes ela me pergunta da Luísa; outro dia ela reparou que eu não havia melhorado da gripe ainda. Acho que esses temas aleatórios são poderosos, capazes mesmo de fidelizar um cliente a um caixa de supermercado.

Eu estava na fila, com meus fones de ouvido, o que é praxe. Mas ontem, eles estavam desligados. Muitas vezes os uso como escudo, um filtro para gente chata que sempre puxa assunto em lugares sem assunto, tipo fila de supermercado.

Com os fones desligados, ouvi perfeitamente a senhora que estava na minha frente perguntando à minha caixa favorita como ela havia passado o Natal. Minha caixa favorita, por sua vez, prontamente respondeu: "ah, tudo bem, tudo em paz, graças a Deus". As duas sorriram, reflexo normal de uma resposta normal a uma pergunta absolutamente normal.

Quando chegou a minha vez de ser atendida, a cumprimentei e tirei o fone de um dos ouvidos, para dar a entender que eu estava sim ouvindo música. Ela começou a passar a pequena compra e, automaticamente lhe perguntei como ela havia passado o Natal. Eu já esperava a resposta clichê que acabara de ouvir e já esboçava um sorriso normal como reflexo à sua resposta normal à minha pergunta normal.

No entanto, ela diminuiu o sorriso e disse: "nem vi. Fui dormir cedo. Tem coisa que se é pra gente ficar remoendo, é melhor dormir, né não?"

Eu não estava preparada para tamanha honestidade. Amarelei o sorriso enquanto guardava os poucos itens que eu estava a comprar. Dei uma resposta qualquer porque mesmo que ela quisesse desabafar, a fila estava imensa atrás de mim.

Senti vontade de lhe dar um abraço, mas como eu disse, a fila estava imensa, perigava eu apanhar. Contudo, vi seus olhos dizendo algo mais, se espichando nas reticências do que ela acabara de dizer. Me despedi sem graça e fui embora.

Hoje eu voltei lá e fui ao caixa dela novamente. Não tive coragem de perguntar sobre seu dia porque o supermercado estava bem cheio, e como ontem, não poderíamos conversar, mas entre dar uma comentada sobre a mudança de tempo e o clássico "será que vai chover" eu vi seus olhos no mesmo lugar de ontem, quase caindo das reticências das palavras tristes que ela confessou entre um item e outro da pequena compra.

Nos despedimos e eu fui embora olhando para o céu, que prenunciava outra tempestade. Tomara que chova sim. Minha caixa favorita, eu já disse, tem nome de flor. Pode ser que ela só esteja precisando de um pouco de carinho para que suas reticências finalmente sejam ouvidas.

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