Quando não enxergar bem é ver além


Tenho um compromisso sagrado todas as noites: andar com a minha cachorrinha. Quando chego em casa do trabalho, no fim da tarde, ela não só me recebe com aquela felicidade de quem não me vê há meses (mesmo tendo me visto no almoço), como fica me seguindo pela casa, ansiosa por nosso passeio noturno.

Quando eu finalmente pego a guia, ela começa a pular, fica num desespero absurdo e eu sempre dou uma bronca nela, mas ela nunca sossega, e eu respiro fundo porque a amo.

Há pouco tempo comecei a levar o celular para nossas caminhadas, para ir ouvindo minhas músicas preferidas. Vai a Luma à minha frente, cheirando tudo quanto é canto da rua, e eu atrás, absorta em minha playlist.

Hoje, além de levar o celular, decidi deixar meus óculos em casa. Foi ousado, eu sei. Praticamente um perigo. Afinal, tenho quase três graus de miopia e só tiro meus óculos para tomar banho e dormir. Sou uma verdadeira refém deles. Pois hoje os larguei em casa e fui pra rua com a dog.

No início eu estranhei bastante, mas aos poucos fui habituando meus olhos e logo eu estava me sentindo num quadro vivo de Claude Monet. 

As pessoas que passaram por mim eram vultos. Às vezes maiores, às vezes, menores. Se eram homens ou mulheres, jamais saberei. 

As luzes dos postes, dos faróis, semáforos e alertas de garagens eram borrões tão grandes e tão bonitos, que enfeitaram o cenário cotidiano. 

Passamos em frente a um prédio que tinha luzinhas padronizadas, do primeiro ao último andar em sua fachada. Elas pareciam luzinhas de Natal na imensa árvore distorcida de concreto.

Até o toque do vento nas folhas foi diferente. No desfoque de minha visão míope, o que vi foi um carinho em câmera lenta. Foi aquele grande borrão verde pra lá, que lentamente voltou para cá, sob o tom amarelado das luzes da rua.

Quase chegando ao nosso quarteirão, o vento soprou mais forte e provocou uma chuva de folhas secas: cena que sempre me emociona muito. Entretanto, hoje eu não consegui enxergar as folhas, mas vi uma revoada de borboletas. Elas estavam tão vivas, que bailavam em todas as direções, livres e graciosas.

Já na nossa rua eu me senti completamente criada por Monet, integrante de uma de suas telas, onde a Arte reside exatamente na falta de exatidão. Me senti livre como as borboletas em sua revoada, sem conseguir delinear as pessoas como elas se apresentam, o concreto em sua forma rígida, as luzes com suas agressões pontuais.

A última coisa que olhei antes de entrar no prédio foi a Lua. A ausência de minhas lentes "corretivas" me fez vê-la como pude: cheia, em toda sua magnitude. Contudo, diz o calendário que hoje ela está crescente. Azar de quem acredita.

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