A chave da melancolia

Aquele sorrisinho que lhe escapava pelo canto da boca denunciava qualquer agrado fora de hora. Afinal, quem se encontra feliz nas primeiras horas de uma tarde de quarta-feira, quando ainda se tem todo o resto do dia e os outros mais, até o tão esperado dia de descanso?

Naquele vagaroso dia, o vagão do trem estava quase vazio e por isso era fácil reparar naquele brilho fugidio, numa hora tão atípica para brilhar.

A razão dessa reluzência tinha, sim, a ver com seu trabalho. Bem, não propriamente com o seu trabalho, mas pelo meio período que lhe coube naquele dia contrapondo as exaustivas 12 horas normais - sem contar as de ida e volta.

Seus planos eram simples: chegar à casa, tomar um banho morno e "esticar o esqueleto", como costumava dizer. Depois, iria bater um bolo - receita nova que leu por aí e lhe encheu os olhos de vontade. Planejava, também, fazer uma videochamada para uma grande amiga que morava a milhares de quilômetros de saudade. Ah, seria uma tarde proveitosa, uma tarde para não desperdiçar sua vida no trabalho sem sentido, uma tarde para investir vida nos seus valores pessoais.

Desceu do vagão com a ansiedade da criança à espera do Papai Noel. É mesmo assim, a gente cresce e nossos fascínios vão mudando de lugar: do anseio por uma bicicleta convergimos ardentemente para uma semi folga no meio da semana. Será que vale mesmo a pena crescer?

Mal desembarcou, imprimiu passos firmes e decididos, bem diferentes dos que iam e voltavam, pesados, em dias normais. 

Virou a esquina e já foi logo sacando as chaves da bolsa. Abriu o portão, atropelou os degraus, meteu a chave na fechadura da porta e deu duas voltas fazendo a força mecânica para abri-la, rodando a maçaneta, mas... a porta não se mexeu.

"É a pressa, que droga!"

Respirou fundo e, novamente, fez todo o ritual, agora mais devagar: chave para a esquerda, uma, duas voltas, movimento de girar a maçaneta e nada. Fez isso por mais uma, cinco, dezessete vezes e, como resposta, o movimento de estátua.

Socou a porta. Uma, cinco, dezessete, quarenta vezes. Silêncio. Chorou de desespero. Ligou ao marido, no trabalho, mas ele só chegaria mesmo muitas horas depois. Chamar o chaveiro não era hipótese: a porta tinha seus macetes e ela, pobre trabalhadora, não tinha dinheiro algum para lhe pagar pelo socorro.

Com os dedos doloridos e derrotados na guerra contra a porta intransponível, jogou-se desolada no degrau mais próximo ao portão. Não sabia o que estava sentindo, mas havia certeza na temperatura fervilhante de seu sangue.

De repente a água do banho arrefeceu, a cama desapareceu, o bolo queimou, a amiga não atendeu.

Ainda perplexa, colocou a bolsa sobre as pernas e se abraçou resignada. Com o rosto rabiscado de lágrimas frustradas e maquiagem derretida, dormiu - uma forma de fugir daquele pesadelo em vida real.

Foi acordada horas depois pelo marido, mastigado pelo trabalho. Subiram automatizados os degraus e, na primeira investida dele, a porta se abriu - uma antiga intimidade.

Ela adentrou à casa na mesma hora de to-do-san-to-di-a, com um torcicolo de regalo. 

Tomou seu banho morno, com gosto de lágrima. Esticou seu esqueleto exaurido e desencantado, como se não dormisse há séculos. Apertou os olhos e dormiu com o ódio, a fúria e a decepção. Sonhou que comia o bolo delicioso da receita nova bem ali, na sua sala, com sua amiga que morava a milhares de quilômetros de saudade.

Na manhã seguinte foi trabalhar. Embarcou num vagão lotado, mas ainda assim, era fácil ouvir a sua melancolia.

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