Passageira


H
oje as unhas da realidade precisavam ser lixadas, mas não há lixa para elas. A vida, eventualmente, se mostra de cara lavada: sem maquiagem, filtro ou disfarce. E cada vez gosto menos do que vejo.

Saí de casa passavam das seis da manhã, parecia noite. Já não são dias de frio severo, ainda assim, continuo a sair com 04 blusas e a sentir minhas mãos congeladas.

Atravesso a ponte procurando por uma resposta consoladora, mas sempre chego ao outro lado com o peito ardendo de rejeição e de vontades inalcançáveis.

Logo chega o metrô. Embarco. Perto de mim sentam-se duas mulheres. Pego a conversa andada: esse foi o primeiro inverno em que as paredes da sala da mulher que fala ficaram infestadas de mofo. Ela já falou com o Antônio, seu vizinho de confiança, e está à espera dele ainda nessa semana para fazer a limpeza. A mulher que escuta, olha para o celular e vai confirmando a história que ouve com um mínimo de interesse, daquele que beira a educação.

Meus fones, nos ouvidos, desligados. Busco ferozmente minimizar os ruídos externos, as notícias desinteressantes e de impacto nenhum, mas nem música quero ouvir agora. Mantenho a pose de quem está a ouvir qualquer coisa.

O céu esboça uma variação de cores que vai do preto ao amarelo bem clarinho. O homem sentado de frente para mim repara na minha curiosidade ao olhar para o céu pelos vidros empoeirados do vagão. Ele também olha lá pra fora, mas parece não ver nada de interessante. Sinto seu olhar voltar para mim com um quê de "você é maluca, tá olhando o quê lá fora?"

Chego à minha primeira parada e desembarco para tomar o próximo metrô. Se os sonhos estão distantes, as obrigações também não moram perto. Desço as escadas rolantes e, no subsolo da estação, um amontoado das mesmas gentes que vejo todos os dias, com suas roupas escuras de inverno, distraídas com seus celulares nas mãos. Às vezes decido manter o meu no bolso só para me sentir diferente, mas no fundo eu sei que sou apenas mais uma nessa manada infeliz, meu semblante de matadouro me denuncia.

Enfim chego ao meu destino. Desço do vagão. Ainda não contei quantos passos dou da estação ao trabalho, mas sei que atravesso dois quarteirões. Sinto as unhas da realidade me enforcando, não tenho lixa para amoldá-las.

Antes do trabalho, padaria. Invariavelmente, o mesmo pedido, todo dia. São dez minutos, com sorte, onze, cronometrados. Saio às pressas e rumo para a esquina, à espera do sinal verde. Enquanto ele não me libera a travessia, sinto-me envelhecer. É como estar na esquina da vida, onde tudo é tal qual uma rotina sem brilho.

Portaria. "Bom dia", tão mecânico quanto o semáforo da esquina.

Escadas. 

Uniforme.

Máscaras - cirúrgica e social.

Login. 

Senha.

Está na hora. Pontualidade que dói. A seguir, dezenas de "bom dia" sem sal, nem açúcar. Sonhar grande tem seu preço e eu sonhei imenso. As unhas da realidade não perdoam. É mais um dia absurdamente comum numa vida que só queria ser interessante. Mais do mesmo. Reclamações que não posso resolver, mas ouço. Querendo ou não, estou aqui para isso - dizem. O dia passa a conta-gotas, mas sua falta de vida me afoga.

É noite. Hora do logoff.

Uniforme no cabide, casacos. Seus muitos panos não acalentam meu coração aflito.

"Boa noite" ao porteiro. Na lixeira da esquina descarto a máscara que usei durante o dia. Se olhar com atenção, vai ver ali também minha vontade de viver.

Pela frente, duas estações de metrô. Com um fio de sorte, arranjo um lugar para me sentar. Indo ou voltando, não chego perto dos sonhos que gerei e é isso que torna qualquer sentido do caminho tão triste.

Amanhã repito cada um desses movimentos paralisantes. Provavelmente não saberei se o Antônio limpou as paredes da sala daquela mulher queixosa. Pode ser que o Manuel tenha pegado Covid pela quinta vez e a Joana tenha mandado o moço da quitanda à merda. Tanto faz. É nessa variação de notícias entediantes que vou e volto, sempre sob as garras impiedosas da vida.

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