Por muito diferentes que sejamos, quando o assunto é sofrer, somos muito semelhantes. Já dizia o poeta que “todo mundo é parecido quando sente dor” e eu acredito nisso. A dor nivela nossa humanidade, nos relembra que não estamos imunes a senti-la seja no corpo, seja na alma.
Acredito também que, se por um lado a dor nos relembra o quão vulneráveis somos, por outro lado, há os sonhos. Quando eu era criança, ouvi uma frase poderosa que, na hora, não se mostrou importante para mim, mas tornou-se inesquecível até que eu finalmente abraçasse suas palavras: “quando o Homem para de sonhar, começa a morrer”. Nossa, que potência nessas entrelinhas!
Quando somos crianças, conhecemos - ou conhecíamos - a dor de um joelho ralado, de um “galo” na cabeça e, ainda assim, sonhávamos sem limites. Você se lembra do que gostava de sonhar quando era criança? Eu me lembro de alguns dos meus sonhos. Queria ter uma casa imensa quando crescesse, queria um piano branco de cauda com pontas douradas - não sei onde vi isso, mas o desejei por anos a fio -, queria ter a coleção inteira da Barbie, queria passar uma noite no supermercado para comer tudo o que eu quisesse, queria ser feliz numa carreira profissional que eu ainda não sabia qual era, mas já sabia que queria amá-la profundamente.
E eu adorava escrever. Eu ganhava muito blocos de papel e escrevia, escrevia, escrevia. Posso estar equivocada, mas me lembro de dois momentos pontuais em que as entrelinhas gentilmente me capturaram para sempre. A primeira foi quando minha professora da 4ª série colocou “O caderno” - música linda do Toquinho - para a turma escutar, com a letra na mão. Eu chorei. E a outra, foi quando a mesma professora colocou “Fernão Capelo Gaivota” para a gente assistir. Confesso que preciso rever o filme, mas fiquei sacudida com sua poesia. Ali estava um pequeno fio de vida que rebentaria no futuro.
Eu escrevia, eu desenhava. Sempre amei papelaria e suas coisinhas coloridas: clipes, canetas, lápis, borrachas, cadernos, papéis, blocos. Sempre fui comunicativa, sempre era escolhida para os teatrinhos da igreja, sempre fui a aluna que assumia o grupo e ia apresentar os trabalhos da escola, sem o menor constrangimento. A palavra sempre esteve ali, comigo. Até no silêncio. Até na solidão da minha vida de única filha.
Descobri, aos 10 anos, o poder de abrigo das palavras. Descobri inúmeros esconderijos dentro das poesias para me refugiar das minhas dores, para gritar meus silêncios. As palavras têm espelhos escondidos e muitas vezes eu precisei ir lá para me rever e me reencontrar também.
O tempo passou. Aos trancos e barrancos, cheguei até aqui e atualmente tenho 05 livros publicados. Nunca tive piano. Nunca tive uma casa para chamar de minha. Tive uma Barbie e nunca fiquei sequer dois minutos dentro de um supermercado após seu fechamento. Até hoje não sei o que é ser realizada profissionalmente.
Ah, a vida real. A vida real e seus solavancos, nos jogando daqui para ali, provando a cada movimento que não temos controle sobre sua cadência. E à medida em que vamos crescendo, que a ficha vai caindo, os sonhos vão esmaecendo e as dores vão se agigantando dentro do coração da gente. Decepções amorosas, financeiras, falsas amizades, doenças que acometem quem amamos, perdas, lutos, tragédias, desilusões… onde cabem nossos sonhos no meio de tudo isso?
Por mais diferentes que sejamos, todo mundo conhece bem algumas dores desta lista. E eu insisto em perguntar: onde cabem nossos sonhos no meio de tudo isso? Onde está escrito que ser adulto é não dar espaço e fé para os sonhos da infância? Em que esquina da vida soltamos a mão da criança sonhadora?
Talvez você olhe para uma foto sua da infância e pense: “que dó, mal sabia essa criança o que viria pela frente”. Pois eu te digo que se tem uma pessoa que sempre soube - e muito bem - o que é melhor para você, adulto, é essa criança da fotografia.
Estamos todos meio desiludidos, exaustos de tanto correr sem chegar a lugar algum, mas, neste momento, eu te convido a procurar uma foto sua de infância. Olhe nos olhos daquela criança que você foi. Tente se lembrar das “viagens” da mente dela, do que ela mais gostava de fazer, onde ela acreditava que iria chegar. Talvez você generalize sua infância em “eu queria ser astronauta” - nada contra ao clichê pueril -, mas se você conversar um pouquinho com ela, vai se lembrar de que, sob este chavão, há nuances que brilham e apontam para um caminho com mais sentido de vida.
E, por favor, me compreenda: não estou no pedestal da razão, eu também estou em busca de realizações, mas consegui compreender que não é uma casa imensa para chamar de minha tampouco um piano branco de cauda com pontas douradas que me farão mais feliz. Foi aquela criança da fotografia que me mostrou que é escrevendo que a gente se sente viva. E ela não me permite esquecer que, mesmo na solidão de uma vida inteira, a palavra sempre esteve comigo.
Sou iluminada por isso? Que nada! A criança da sua fotografia também tem uma resposta clara para as perguntas do teu coração. Vá conversar com ela. Agora!


