Leito 14 das urgências

Dia desses eu estava lendo posts aleatórios no Threads e surgiu um relato sobre uma criança muito mal-educada. Honestamente nem me lembro do que se tratava a história, mas um comentário surgiu reiteradamente e me marcou muito: "seu filho só é especial para você".

Eu fiquei relendo estas palavras por alguns instantes e elas ficaram reverberando dentro de mim. Depois, fui engolida pela rotina e me esqueci disso, até a vida dar uma reviravolta e eu ter meu marido internado no hospital, com pneumonia.

Foram dias terríveis, mas as noites conseguiam ser muito piores. Eu estava ali, no quarto quase escuro, com uma pequena luz de presença, vendo vagamente o contorno de seu corpo grande, se contorcendo de febre, em delírios, não falando coisa com coisa e tossindo absurdamente. Até que a internação deixou de ser uma hipótese e tornou-se o destino.

É de partir o coração deixar um ser especial no hospital, aos cuidados de sabe Deus quem, só podendo ser visitado em horários rígidos, inflexíveis. Ali, naquela atmosfera densa e triste, pedir para falar com o médico ou pedir uma almofada têm o mesmo tom de costume na resposta. Foi ali, naquela sofreguidão e peso, que aquele comentário voltou como um raio estrondoso à minha memória: "seu marido só é especial para você." Ali no hospital ele era apenas o "leito 14 das urgências".

Adentrar um hospital é deixar na porta a sua identidade e suas peculiaridades. Tudo o que você acredita, defende, ama, despreza, tudo fica na porta. Dali para dentro seu nome é um número de uma ala, apenas.

Ali nas urgências eu vi mãe sofrendo pelo filho doente, vi doente sofrendo sozinho, vi a mim mesma agoniada pelo "leito 14". Cada leito ali, com sua história, só é especial para um ou outro que o conhece e convive. É tão injusto você ver a pessoa especial sendo tratada como mais um por ali. E não critico o tratamento, nem de longe ele foi maltratado, mas também não se interessaram em ver o que havia sob a camada do "leito 14". 

Meu ponto aqui, como já disse, não é criticar o serviço médico, eu compreendo a demanda e o ritmo frenético em que se trabalha no ambiente hospitalar. O ponto é que quem é especial para você é especial só para você. Aqui, reduzimos a individualidade, a essência e até mesmo o ego de cada um para uma nivelação a qual ser humano algum se sente confortável. 

Temos a sensação de que somos muito especiais, acreditamos nisso com todas as células do nosso corpo até que, precisamos de uma internação. Ou até que... morremos.

Hoje, com sua recuperação quase que total, eu ainda me pego refletindo acerca disso, da nossa importância no mundo. Quantas pessoas estudaram conosco e nunca mais vimos? Quantos vizinhos tivemos ao longo da vida? Quantas autoridades já precisamos nos submeter e hoje, sequer lembramos do seu primeiro nome? Quantos "amigos" temos nas redes sociais e ao menos sabemos se estão vivos?

E você, que ora me lê, será que é lembrado por algum ex-colega de classe ou algum ex-vizinho? Será que você tocou a vida de alguém ao ponto de ser especial para esse alguém, mesmo que nunca mais tenham se visto? Será que você só é especial para quem convive com você e, se sim, isso basta?

Aqui, delicadamente, tocamos no legado, um tema tão precioso que merece ser refletido. Aqui eu deixo algumas perguntas para reverberarem dentro de seu coração a ponto de te incomodar: como você quer ser lembrado? Quais são os teus signos, o que é visto por alguém que imediatamente lembra você? Lembrar de você é motivo de sorrir, de inspirar?

Não pense que legado tem a ver com salvar o mundo; tem a ver com a transformação que você provoca na vida de alguém. Um bilhete, uma palavra carinhosa, um bolinho com café passado na hora, uma visita no hospital quando ninguém mais se predipõe a fazer... 

Ser especial ultrapassa título, condecorações ou prêmios. E também vai além de ser parente. Ser especial é, mesmo sendo o "leito 14 das urgências" ser autor de uma história que muda e dá sentido a outras vidas.